domingo, 30 de maio de 2010

4.


Parou em frente ao espelho.
Seus olhos desceram pelos cabelos escuros, lisos como rios que cortam a planície. Ela se perguntou como pareceriam loiros, ondulantes. Desejou ter olhos claros, suaves. Desejou ter a pele mais clara, alva como os anjos pintados em igrejas. Desejou ter as faces coradas com o pudor tímido que tinha.
Apertou os lábios fartos. Não era tipicamente bela. Não era comumente confundida com outra. Era uma mistura dos antigos das florestas com os intrusos do Norte. Seu coração era, portanto, parte dessa mistura. Diferente a cada batida. Encarou os olhos negros como pedras ônix no espelho, e concluiu que só de perto era possivel ver os detalhes íntimos de sua íris. Deu um passo para trás e viu sua imagem se transformar. A garota que sorria para ela parecia-lhe mais antiga do que sua idade. Seus olhos turvos esbanjavam os mistérios há muito perdidos para os novos costumes. Sua postura confiante encheu o ambiente, e até a garota se assustou. Era assim que os outros a viam?
Sua imagem deu-lhe uma piscadela.
A garota sorriu de volta. A imagem a imitou. E sem olhar para o espelho novamente, apagou as luzes e foi embora.

quinta-feira, 27 de maio de 2010

3.


Ah, meus olhos castanhos. Poderiam ser azuis, como o caribe. Como o céu, como a harmonia. Impessoais, transparentes, potentes. Poderiam enregelar quando furiosos, tempestuosos. Verdes, os olhos verdes. Esmeraldas faiscantes são os orbes verdes ao Sol. Noturnos, felinos, acaramelados. Misteriosos, persuasivos, seus segredos podem aquecer um coração. Mas, prefiro pensar que escolhi meus olhos castanhos, que mais parecem troncos de freixos antigos. Simples, diretos, simpáticos. Olhos castanhos têm na infantilidade o charme. Nuances brilhantes. Latência. Não são belos como os mais claros, mas é no escuro que conseguimos ver as estrelas mais brilhantes, não?



2.


E a chuva agora caia, caia. Pingos translúcidos, brilhantes até mesmo naquele dia cinzento. Esquivavam-se os mais arrumados, os possuidores de mais obsoletidades. Alguns se arriscavam, mas logo se afastavam da extremidade da calçada. E a chuva, indiferente, continuava a cair. Numa lufada suave, as frias gotas fizeram os que estavam mais perto de alvo. A grande massa recuou, espalhafatosa. Protegiam seus apetrechos, suas bugigangas, efemeridades. E o vento borrifou novamente os aljôfares no ar. Uma garota, que havia saido um pouco mais tarde, viu o grande recuo, e pensou ser algo mais sério. Espichou-se por cima das botas velhas e gastas, e olhou a rua, por onde escorria água. Seus olhos refletiram a perplexidade que sentiu por alguns segundos: não havia trazido guarda-chuva! O dia amanhecera tão bonito. Ela nunca gostara de dias cinzas – sempre preferira as cores de um dia de Sol. Sentia-se encurralada, enclausurada, claustrofóbica. Começou a ficar histérica como os outros. Pensou em como chegaria em casa, o transito se transformava num verdadeiro caos em dias de chuva. Os outros procuravam por onde seguir. A tensão aumentava, pois mais pessoas se concentravam na calçada úmida. Seus pés começavam a se roçar indelicadamente. A obsequiedade se diluia no ar. Então, em outra lufada, gotículas frias bateram contra seus óculos. Estarrecida, a garota levantou as mãos para enxugá-lo. Foi quando ela viu arco-íris disformes na chuva. Recolocou os óculos, percebendo como as coisas mudavam de padrão. As pessoas deram lugar a pontinhos borrados. Até mesmo suas lamurias foram substituidas pelo ritmo suave das gotas tocando o chão. A visão borrada mostrou-lhe uma pequena brecha pelo amontoado de seres balbuciantes. Ela seguiu por ali, até sentir-se proxima da beirada da calçada. Hesitou. Se continuasse, iria se molhar. Se ficasse, não iria para casa. Uma hora, todos ali teriam que sair. Todos, inexoravelmente, teriam que se deixar molhar pela chuva. Alguem precisava dar o primeiro passo. Ela fechou os olhos, encolheu-se, esperando o frio. No começo, ela o sentiu. Suas roupas pesaram, seu corpo pareceu afundar no cimento. Ela se deu conta do que fizera e a vergonha veio, pintando-lhe o rosto. A garota esperou pelas brincadeiras e vaias, que vieram. Afinal, lidava com adolescentes. Subitamente, se sentiu quente, e pensou que a causa fosse o rubor. Mas percebeu que, agora, as gotas pareciam acariciar-lhe o couro cabeludo, escorrendo por suas madeixas até as pontas de seus cabelos. Ela não se sentiu mais pesada. Acostumara-se. Abriu os olhos e olhou para trás; as gotas caiam do coberto, como uma cortina descontinua e brilhante. Os outros agora pareciam-lhe crianças assustadas. Amuadas, presas ao que era seguro. E ela entendeu. Um sorriso brando se abriu em seu rosto molhado, e com um gesto mínimo de cabeça, ela os convidou para a seguirem. "Louca!", disseram, ao ver ela se afastar. "Como eu poderia ir nessa chuva? Não posso sair daqui, não posso fazer nada", eles se lamuriavam. Até que alguns poucos entenderam e também sairam para a chuva.