quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

16.



As árvores acertavam-lhe o rosto molhado. As mãos abriam caminho avidamente pelos galhos baixos, correndo o máximo que suas pernas lhe permitiam. Tropeçou numa das raizes retorcidas como veias da própria terra que tanto detestava. Caiu, injuriando seu cotovelo gravemente. As vozes atrás dela exclamavam ordens mortais aos cães de caça.
Os olhos azuis da fugitiva brilhavam em uma determinação suicida.
Levantando-se sem se permitir sentir dor, tornou a correr pela terra úmida. A garoa fina encobria o céu, tornando a escura floresta um forno claustrofóbico. Levantando o pescoço magro e sujo, ela viu nesgas de noite pelas frestas entre os galhos. Sorriu de forma animalesca - não devia estar distante do precipício.
Ouviu, acima de sua respiração, passos mais rápidos e virou minimamente o pescoço para confirmar o que seu coração acelerado lhe indicara com um solavanco maior: um enorme cão estava ao seu encalçe. Ela girou para frente, frustrada e cheia de cólera. Nunca voltaria. Nunca seria de mais ninguem, a não ser do firmamento de onde fora arrancada. Com os sentidos sobrecarregados, relanceou os olhos novamente para cima, mas as copas das árvores ainda estavam lá, barrando-lhe o caminho.
A dor atingiu-lhe o peito e o galho baixo que sua visão deixou escapar se partiu, caindo com ela. O ar se esvaiu de seus pulmões e seu rosto agrediu a lama. A dor no cotovelo a deixou enjoada.
Os olhos da moça se arregalaram e suas mãos deslizaram até a própria cintura.
O rosnado veio. O ar tremulou. Um movimentou foi feito. Um coração parou.
Ela se levantou, largando o pequeno punhal que trazia junto ao corpo. Seus cabelos molhados e sujos estavam grudados no rosto, contorcido em dor e obstinação. O braço machucado balançava, morto. Ela mais se parecia com uma selvagem.
Tornou a correr.
Eles logo voltariam para buscar a melhor arma de guerra que podiam ter. Fora presa naquele reino, justificando o sequestro pelo luxo que serviam a ela. Era apenas uma peça de chantagem, uma moeda de troca - reinos e soldados, quem pagaria mais para ter uma criatura como ela em seu poder. Fora impossibilitada de voar, por ter terra tocando sua pele o tempo todo. As asas negras que tatuavam suas costas eram apenas riscos ornamentais.
Ela ouviu o mar.
Ela sentiu o salgado vento noturno.
Ela viu o fim das árvores.
Com uma risada desvairada, rasgou as costas do vestido, exibindo as linhas negras. Quando enxergou a pedra lisa que dava inicio as rochas escarpadas da decida, a dor raspou-lhe a coxa esquerda.
Havia uma flecha cravada na terra a sua frente.
Ouviu gritos de aviso e passos. Estavam chegando.
Seus passos tornaram-se um fardo. Um. Depois. Do outro.
A chuva fora da fortaleza de árvores estava mais espessa, tornando o limite entre a noite e o mar inexistentes. Ouviu vozes que a mandavam parar e amaldiçoou a todos na lingua de seu povo . Estava quase lá...
A alavanca da besta foi acionada num som seco. A flecha zuniu no ar.
Seus pés deixaram a terra.
Ela caiu dentro da noite.

Suas asas se agitaram.