domingo, 24 de fevereiro de 2013

18. É efêmero



Estava de volta.

Lenta, tão lenta que mal pareceu se mover. Abriu os olhos com letargia, conforme deslizava o pescoço  primeiro para a esquerda, então para a direita. A escuridão salpicada de luzes lânguidas foi se expandindo ao infinito, e ela reconheceu as luzes como enormes vaga-lumes dançando por trilhas de árvores feitas de pedras opacas, brancas e leitosas ao seu redor.  

Alucinação. Talvez outro apelo de seus nervos, resultado de muitas noites mal dormidas. Ou outro sonho vívido. Mas, fosse o que fosse, estava ali novamente.
Andou um pouco, mal sentindo seu corpo. As árvores ao seu redor refletiam em seus troncos pedaços do passado, lembranças que se repetiam e pulavam aleatoriamente. Parou para assistir uma dessas lembranças, e demorou quase cinco longos suspiros para perceber que não pertenciam a ela. Ou talvez tivessem pertencido, há muito tempo, quando seu coração batia em outro peito. Com um meneio de cabeça, forçou-se a esquecer o que tinha acabado de ver  as batalhas de suas outras vidas. Andou mais um pouco, procurando por algo que não tinha certeza.
Logo, viu uma silhueta encapuzada na encosta de um precipício. Um sopro de nostalgia lhe transpassou o peito, e um sorriso transbordou por seu rosto inconsistente. Aproximou-se com passos que pareciam lentos como anos, reconhecendo a forma que se virou amigavelmente para lhe cumprimentar. 
Parou ao lado dele no precipício, e mirou o mar lá embaixo, que adotava a forma do universo  ela podia ver planetas, estrelas e sóis chocando-se com suas ondas no desfiladeiro.
Um respirar profundo saiu de seus lábios, transformando-se em névoa platinada. Ela pairou no ar por alguns segundos, formou alguns símbolos e escorreu para o abismo a sua frente. Lá embaixo, as ondas batiam na costa alcantilada de pontas cobertas de algo brilhante: sonhos, sentimentos, fantasias - ela nunca saberia diferenciar. 
 Sempre  ela se pegou dizendo. As palavras dessa vez saíram como borboletas transparentes, dançaram pelo ambiente de luzes e pousaram no ombro da figura ao seu lado.
 Diga, minha amiga  respondeu o ser que estava ali. Ela não conseguiu dizer se era um homem ou uma mulher, mas sabia que nunca conseguia. Tinha essa certeza. Tudo parecia perfeitamente em ordem naquele momento.
 O mundo não mudou muito.  confidenciou-lhe, sem saber o porquê.
 Mas não é por isso que você está lá? 
 É...? — murmurou. Lembrava-se de ter essa certeza, e aos poucos, lembrou-se de outras coisas. Coisas que sempre estiveram ali.
 Se bem me lembro, você estava decidida a mudar as coisas. Sua vontade parecia fogo, minha querida.
 Se era fogo, acabei me queimando de novo. 
 Sabe muito bem que já passou por tormentos piores  disse a figura, suavemente.  Encontrou aqueles que também carregam o fogo consigo?
 Alguns.  respondeu ela, e alguns rostos pairaram no ar. Todos transformando-se em outros rostos, até desaparecerem na noite.
 Ah  soltou a figura, com satisfação.  Eles sempre dão um jeito de te encontrar, não? Como estão?
 Lutando. Ah, mas dessa vez, nada de espadas nem armas de fogo. Está mais fácil. Não é a mesma selvageria, mas o mundo está de cabeça pra baixo. 
 Vamos dar um jeito nisso, não vamos?
 Claro que vamos. — disse, como se sempre tivesse tido isso em mente. E talvez tivesse. — Só que as vezes eu preciso de um tempo pra respirar. Minha casca dessa vez é bem forte, ela aguenta o atrito.
 Atrito?
 O que eu sei ser certo, e o que o mundo quer que ela seja. Ela aguenta bem, é forte. 
 Forte, é?
 Passa por muitas provações também. Ah, e o coração que bate, precisa ver... Já se partiu algumas vezes e continua acreditando no melhor. 
 Seu coração sempre acaba cheio de cicatrizes  disse a figura, fazendo um movimento suave com a mão. Um rastro de névoa prateada formou um pequeno espelho, onde cenas de várias épocas se costuraram num filme de partir o coração. A garota balançou a cabeça, desfazendo as cenas com outro gesto suave.
 É o que eu preciso fazer. Eles precisam de ajuda, não é?
— Precisam sim, minha amiga. E como.
— Eles precisam ver que existe um mundo mais cheio de luz. Poucas vezes encontrei alguém para ter ao meu lado, com os mesmos propósitos que eu.
 É cômodo, minha querida. Mudar requer coragem de enfrentar vidas de renúncia e cegueira.
— Sei que é — soltou ela, num suspiro.
 É por isso que esta aqui? Outra cicatriz? 
 Uma pequena. Já está melhor. Tive que dar um basta. Chega a ser triste, sabe. Tudo que elas querem e saber da minha casca, mas a casca acaba. A casca vira pó. Eu. Não. Sou. A. Casca. Tive muitas cascas durante minha existência. Será que os outros não podem ver que tudo que a casca faz, é efêmero? A juventude acaba, a vida passa, e eles voltam, para repetirem tudo isso. O que eu posso mostrar a eles é... Tão maior que tudo isso!
 Minha amiga - sorriu a figura através das palavras.   Ninguém muda ninguém. Você precisa ser o exemplo, apenas. Aqueles que conseguirem ver a luz que o fogo traz, perceberão que há uma forma melhor de se viver, com uma outra razão, sem o medo da morte, sem o medo da velhice...  com um suspiro, a figura meneou a cabeça.  Nosso tempo acabou. Sua casca está para acordar. 
 Não se preocupe, ela não vai se lembrar de nada. Elas nunca lembram.
 Seja forte, minha amiga. 
Com um sorriso, a garota tocou o ombro da figura e observou o mar lá embaixo. Estava mais calmo. Os planetas e estrelas em sua superfície brilhavam calmamente, na profundidade inacabável. 
— Eu serei.